Quando a Medicina e a Robótica se unem para promover movimento



Nos últimos séculos, os avanços que a medicina obteve foram bastante significativos. Ao levar em consideração, por exemplo, o desenvolvimento dos estudos em relação ao cérebro, que é foco desse ensaio, é possível notar um grande progresso. Durante a Idade Média, a maior parte dos cientistas acreditava na teoria dos quatro humores de que os indivíduos seriam controlados por humores e que o cérebro seria formado por um deles, o humor fleumático. Essa teoria foi uma herança dos conceitos da Antiguidade. Com a revolução científica, ocorreu então o surgimento de mapas cerebrais e diversas descobertas, como o fato do cérebro ser um órgão que funciona com impulsos elétricos e de se tratar de uma rede de conexões. Atualmente, devido à herança do conhecimento e do avanço tecnológico, os cientistas estão cada vez mais próximos de entender plenamente o funcionamento do cérebro, e ao mesmo tempo, estão conseguindo significativo desenvolvimento na interação entre a tecnologia e a superação de limites impostos por condições físicas.






Imagem que representa as conexões do cérebro registradas por um scanner
Fonte:Human Connectome Project (HCP)



Tecnologias que antes pareciam ser possíveis somente em filmes de ficção científica, tais como Star Wars e Robocop, nos quais são mostrados braços mecânicos controlados pelo pensamento e exoesqueletos que permitem aos indivíduos recobrar os movimentos estão sendo praticadas e daqui a alguns anos poderão ser mais difundidas a indivíduos impedidos de se movimentar.


Muitos ainda são afetados pela paralisia, que pode ser causada por diversos fatores como lesão na coluna vertebral, AVC e doenças neurodegenerativas (doenças que causam a perda progressiva de neurônios, tais como: degeneração espinocerebelar e esclerose lateral amiotrófica). Em todos esses casos, o cérebro continua enviando as informações de movimento, porém algo impede o envio de informações da região isolada para seu destino. É possível entender da seguinte forma, o caminho entre a intenção de movimento pelo cérebro, e o movimento em si realizado pelos membros foi de alguma forma danificado. A solução encontrada por cientistas é construir um novo caminho do cérebro ao braço robótico ou ao exoesqueleto.


A prática de controlar o membro mecânico ocorre da seguinte forma: inicialmente são instalados sensores de 4mm de comprimento com 100 eletrodos que registram os sinais elétricos emitidos pelos neurônios, esses sinais são transmitidos do cérebro até um computador que possui um programa para interpretar os sinais cerebrais, e enviar as instruções para o objeto a ser controlado por essas ordens. Cada eletrodo consegue ler uma quantidade restrita de informações, portanto, na maioria dos casos é necessário implantar mais de um sensor, por exemplo: em macacos cada sensor com 100 eletrodos capta a informação de dois mil neurônios, apesar de parecer uma grande quantidade, é necessário levar em consideração que o cérebro humano possui 86 bilhões de neurônios.






Sensor com eletrodos
Fonte:Universidade Brown


A melhor região para implantar os sensores de movimento ainda está sendo estudada. Em pesquisas iniciais, o posicionamento do implante neural, que requer uma cirurgia envolvendo a perfuração do crânio, ocorreu na área específica de controle das mãos e braços, no córtex motor primário, região do cérebro que gera comandos para os músculos se locomoverem.


Em 2006, após anos de pesquisa um projeto chamado BrainGate desenvolvido pela Universidade Brown implantou um sensor no córtex motor de Matthew Nagle. Essa foi a primeira vez que o implante foi realizado em humanos. A partir dele Matthew, um ex-jogador de futebol americano que ficou tetraplégico, conseguiu controlar um cursor de uma tela apenas com os seus pensamentos.


Em 2011, Cathy Hutchinson, uma senhora que na época possuía 58 anos conseguiu controlar um braço robótico pelo mesmo processo, essa senhora havia sofrido um derrame que a havia impedido de falar e se mover, pois seu córtex motor tinha parado de se comunicar com o corpo. Através da BrainGate a senhora conseguiu beber um copo de café sozinha.






Cathy Hutchinson bebendo café
Fonte: Universidade Brown





Um outro estudo realizado, conectando o sensor ao córtex motor, na Universidade de Pittsburgh foi realizado com Jan Scheuermann, uma mulher de 53 anos com uma doença degenerativa espinocerebelar, na qual as células de seu próprio corpo "atacaram" as células do tronco cerebral e cerebelo, a mulher tetraplégica passou pelo mesmo processo, o sensor foi conectado ao córtex motor, e conseguiu mover o braço robótico obtendo uma velocidade no movimento sem precedentes.






Jan Scheuermann controlando o braço robótico
Fonte:Universidade de Pittsburgh





Diferentemente, nas pesquisas da Caltech associadas com a Universidade do Sul da Califórnia, o implante neural foi colocado no lobo parietal superior, buscando maior leveza nos movimentos, já que essa região do cérebro planeja os movimentos, diferente do córtex motor que proporciona movimentos muito bruscos, já que envia ordens para os músculos se moverem. A diferença na localização dos sensores permite ao indivíduo realizar movimentos de forma mais intuitiva, pois no córtex motor o movimento é dividido em partes, por exemplo, ao pegar um copo de água o córtex envia as ordens para esticar o braço, abrir e fechar a mão. Já o lobo parietal é a região do cérebro que envia o movimento de forma combinada. Erick Sorto foi o homem que recebeu os eletrodos no lobo parietal, ele se encontra tetraplégico em função de um tiro que levou aos 21 anos. Em 2013, o sensor foi implantado e em 2015 ele conseguiu beber um copo de cerveja por meio do braço robótico.






Implante de prótese neural em Erik Sorto
Fonte: Caltech



Os próximos desafios para inserir esse produto no mercado são: durabilidade do sensor; o risco de infecções; a necessidade de cirurgia em pacientes com paralisia que possuem mais riscos por ter ossos e sistema circulatório debilitados e o aperfeiçoamento do sistema, com o objetivo de que o paciente sinta que está tocando no objeto com a mão robótica. Isso seria feito pelo envio de estímulos elétricos para o córtex somatossensorial, a parte do cérebro que interpreta os estímulos do tato, os estímulos que a pele recebe do meio externo. Outro desafio é criar uma forma de enviar as informações do cérebro para o membro robótico sem o cabo conector; mas a barreira que os cientistas enfrentam em relação a isso é a necessidade de transmitir muitas informações.


No ano passado, na abertura da Copa do Mundo, houve uma demonstração inédita do projeto "Walk Again", desenvolvido pelo neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis. Durante alguns segundos o jovem paraplégico Juliano Pinto, de 29 anos, utilizando o traje de exoesqueleto, desenvolvido por Nicolelis foi filmado dando um chute na bola controlando o traje com o seu pensamento. A demonstração durou pouco tempo, e gerou controvérsias em relação a quantidade de recursos públicos envolvidos e a distinção entre o que Nicolelis pretendia fazer :“Nosso desejo é que uma criança brasileira, até então quadriplégica, possa capitanear a Seleção Brasileira em direção ao campo e entrar no campo à frente do time nacional”, e o que realmente fez, porém deve-se levar em consideração o pouco tempo com que trabalhou nesse projeto e eventuais desentendimentos que teve com a FIFA. De qualquer forma ao observar a carreira de Nicolelis, não é possível negar as contribuições daquele que foi considerado um dos 20 maiores cientistas do mundo pela revista Scientific American.


O neurocientista brasileiro, pesquisador da Universidade Duke, passou anos estudando sobre o cérebro e o controle do movimento em macacos Rhesus. Em 1999, ele conseguiu fazer com que a macaca Belle controlasse um braço mecânico, através de eletrodos implantados no cérebro dela, em 2008 conseguiu fazer com que a macaca Idoya, nos EUA controlasse um robô, com sua intenção de movimento no Japão, através da transmissão via Internet.


Então as intenções de Nicolelis, voltaram-se para o projeto "Walk Again". O neurocientista discorda do pensamento de que cada área do cérebro possui uma determinada função, e realizou diversos estudos sobre esse assunto,afirmando, inclusive que "Não são sempre os mesmos neurônios que produzem a mesma ação. A atividade cerebral flutua" , portanto, para seu exoesqueleto, criou uma espécie de touca transmissora de sinais elétricos que funciona por eletroencefalografia, captando,filtrando e ampliando os sinais elétricos do cérebro no crânio, realizando um processo menos intrusivo do que a cirurgia para implantar sensores no crânio que é o método mais frequente. Essas informações são enviadas para um computador em uma espécie de mochila que envia a ordem de movimento para as partes do exoesqueleto, que também conta com sensores que transmitem ao usuário a sensação de tato. O equipamento que recebeu o nome de BRA-Santos Dumont 1 pesa 70kg, o que representa um dos desafios de fazer essa tecnologia funcionar no dia a dia, Porém, Gordon Cheng, pesquisador da Universidade Técnica de Munique, responsável por desenvolver a estrutura mecânica do exoesqueleto, possui uma visão otimista, de que em menos de 20 anos, o exoesqueleto estará disponível no mercado, com preços acessíveis.


Um avanço científico que está sendo gradualmente liberado para pessoas que perderam o movimento de braços ou pernas são as próteses biônicas também controladas pelos impulsos elétricos do cérebro. Porém, a diferença está no modo como a parte eletrônica recebe as informações, nesse caso não seria necessário criar uma ponte entre o cérebro e o membro mecânico, já que o caminho não foi danificado mas sim ligar o membro em questão aos nervos. Portanto, é realizada uma cirurgia chamada de osseointegração, na qual o osso do indivíduo é ligado a um implante de titânio correspondente ao membro que lhe falta. Nas terminações nervosas implantam-se eletrodos que capturam os impulsos elétricos provenientes do cérebro, que são codificados e enviados em forma de comando para a prótese robótica.






Exoesqueleto desenvolvido por Nicolelis

Fonte: Miguel Nicolelis





O primeiro implante de um braço biônico ocorreu na Universidade Biomédica de Roma em 2009. O jovem que recebeu a prótese foi Pierpaolo Petruzziello, um curitibano que perdera o antebraço esquerdo em um acidente de carro. O procedimento consistiu em implantar temporariamente um braço robótico. Atualmente muitas empresas e universidades, como a Bebionic e a Universidade Médica de Viena vem trabalhando em projetos com braços biônicos, aperfeiçoando a ideia inicial. Alguns indivíduos já receberam a prótese e podem realizar diversas atividades como costurar, beber água, escrever entre outras, que anteriormente eram impossibilitados de realizar.






Pierpaolo Petruzziello e o braço biônico
Fonte: Lifehand





Um outro desafio dos cientistas, foi proporcionar a sensação de tato, e para isso, em 2014, o pesquisador Silvestro Micera, da Escola Politécnica Federal de Lausanne criou uma mão biônica com sensores táteis. Esses sensores transmitiam informações a eletrodos instalados nos nervos ulnar e mediano que posteriormente eram transmitidos ao cérebro por meio de impulsos elétricos. Outra questão, é proporcionar sensações mais reais a quem utiliza esses aparelhos, e reduzir o custo dos equipamentos, que ainda é muito elevado.


Uma outra pesquisa de grande destaque sobre as próteses biônicas é a pesquisa do biofísico do MIT, Hugh Herr, sobre próteses de membros inferiores. O próprio durante uma escalada mal sucedida teve as partes das duas pernas abaixo do joelho amputadas. Atualmente ele desenvolve as mais avançadas próteses biônicas de pernas existentes, chamadas BiOMs, que funcionam a bateria íon-lítio. Podem ser ajustadas para correr, pular e saltar e já são utilizadas por cerca de 1000 pessoas, inclusive pelo próprio Hugh Herr.


Em 2014, Hugh concretizou o projeto que permitiu que Adrianne Haslet-Davis, uma dançarina, que perdeu uma parte da perna, no atentado terrorista de Boston, pudesse voltar a dançar por meio de uma prótese feita especificamente para ela. A cena de sua primeira dança pode ser vista em uma palestra no TED, na qual ele faz a seguinte afirmação: "Não é muito reconhecido, mas mais da metade da população mundial sofre de alguma forma de condição cognitiva emocional, sensorial ou motora, e, devido à tecnologia precária, muitas vezes, estas condições tornam-se deficiências e uma qualidade de vida pior. Níveis básicos de funções fisiológicas deveriam ser parte de nossos direitos humanos. Toda pessoa deveria ter o direito de viver sem deficiência, se eles assim quiserem; o direito de viver sem depressões; o direito de ver a pessoa amada, no caso da visão debilitada, ou o direito de andar ou dançar, no caso de membros paralíticos ou membros amputados. Como sociedade, podemos conquistar estes direitos, se aceitarmos a proposição de que humanos não são deficientes. Uma pessoa nunca pode estar quebrada. Nossos ambientes artificiais, nossas tecnologias,são quebrados e incapazes. Nós não precisamos aceitar nossas limitações, e podemos transcender nossa deficiência através da inovação tecnológica. Através de avanços fundamentais na biônica neste século, iremos construir a base tecnológica para uma experiência humana melhor, e acabaremos com a deficiência."






Hugh Herr e sua perna biônica
Fonte: MIT



Palestra de Hugh Herr no TED:






Fontes:

A nova ciência do cérebro - Revista National Geographic - Fevereiro 2014
http://revistapesquisa.fapesp.br/2012/02/23/n%C3%BAmeros-em-revis%C3%A3o/
http://revistaplaneta.terra.com.br/secao/saude/poder-mental
http://veja.abril.com.br/noticia/ciencia/paralisada-ha-15-anos-mulher-consegue-beber-cafe-usando-braco-mecanico-controlado-pela-mente/
http://info.abril.com.br/noticias/ciencia/2015/05/tetraplegico-consegue-beber-cerveja-usando-braco-robotico-controlado-com-a-mente.shtml
https://m.youtube.com/watch?v=ogBX18maUiM
http://motherboard.vice.com/pt_br/read/o-homem-tetraplegico-que-consegue-controlar-um-braco-robotico-com-o-pensamento?trk_source=recommended
http://www.nbcnews.com/storyline/world-cup/we-did-it-brain-controlled-iron-man-suit-kicks-world-n129941
http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-63/questoes-neuroludopedicas/o-chute
http://rollingstone.uol.com.br/edicao/edicao-95/verdade-de-nicolelis#imagem0
http://www.washingtonpost.com/national/health-science/mind-controlled-prostheses-offer-hope-for-disabled/2013/05/03/fbc1018a-8778-11e2-98a3-b3db6b9ac586_story.html
http://cienciahoje.uol.com.br/noticias/2013/02/mao-bionica
http://dbiotec.blogspot.com.br/2014/06/diario-de-um-engenheiro-proteses.html
http://gizmodo.uol.com.br/exoesqueleto-nicolelis-pronto/
http://www.ibtimes.co.uk/world-cup-2014-paraplegics-will-walk-independently-mind-controlled-robotic-suits-1444304
http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/eu-estudante/me_gerais/2013/02/20/me_gerais_interna,350524/protese-com-tato.shtml
https://www.ted.com/talks/hugh_herr_the_new_bionics_that_let_us_run_climb_and_dance/transcript?language=pt-br
http://super.abril.com.br/ciencia/o-que-faz-cada-lado-do-cerebro
http://www.zebeto.com.br/a-sofrida-e-longa-batalha-de-pierpaolo-petruzziello/#.VagoJxg4-K2

Comentários